segunda-feira, 15 de setembro de 2008

Sexualidade feminina e histeria




No final do século XIX, as concepções de que as mulheres não sentiam prazer ganhou legitimidade nos meios científicos pois eram reafirmadas, fundamentadas e justificadas por médicos como Kraftebing, Lombroso e Gugliemo Ferrero. Para esses médicos, na mulher, por natureza, o instinto materno anulava o sexual e a mulher que sentisse desejo ou prazer seria anormal. Mas, a ausência de desejo poderia provocar repulsa pelo ato sexual e assim a mulher não teria filh@s e não sendo mãe, ela estaria exposta a doenças de cunho físico, psíquico e moral. Para esses médicos, a mulher só se realizava sendo mãe.
Nas últimas décadas do século XIX, pesquisas médicas sobre o comportamento sexual feminino, colocavam em xeque esses pressupostos que definiam a mulher como um ser por natureza assexuado ou anestesiado sexualmente. Foi então que em 1853, um médico escocês, J. Mathews Duncan, divulgava em várias conferências que resultados sobre experiências eróticas femininas apontavam para aspectos que viabilizavam a percepção de que “nas mulheres o desejo e o prazer estão sempre presentes”
Em 1907, o sexologista alemão Iwan Black divulgava um estudo sobre a vida erótica moderna. Tendo entrevistado “mulheres cultas”, elas teriam dito que tinham muitas vezes até mais prazer que os homens. No Brasil, alguns médicos reconheciam a existência de prazer e desejo nas mulheres, mas deixavam passar como se elas não manifestassem nenhum orgasmo. Para os médicos, a ausência ou a precariedade da vida sexual poderiam resultar em conseqüências “funestas” para as mulheres – como o hábito da masturbação – causadora de esterilidade, aborto – ou adultério (realmente os senhores da ciência médica não sabiam nada sobre nós!)
Como a ausência de vida sexual, os excedentes ou “perversões” na realização do desejo e do prazer conduziram as mulheres a problemas físico, mental e moral. A sexualidade feminina teria que ficar circunscrita ao leito conjugal e nos estreitos limites entre o excesso e a falta. O gozo no ato sexual seria substituído pelo gozo através da amamentação.
Reconhecendo ou negando a existência do desejo e do prazer da mulher, os alienistas estabeleciam uma íntima ligação entre as perturbações psíquicas e os distúrbios da sexualidade em quase todos os tipos de doença mental. Entre as doenças mentais mais destacadas estavam a histeria e a hipocondria.
Sendo punidas quando expressavam sua sexualidade, sendo glorificadas apenas como mãe, as mulheres eram ligadas a histeria devido ao seu corpo ‘frágil’, “flácido”, mais do que ao corpo masculino. A histeria em sua essência seria uma doença feminina para os médicos daquela época. Para os antigos, “o mal histérico seria provocado pelas manifestações de um útero que agiria como um animal, oculto no interior do organismo.”
Em 1859, o médico Briquet definia a histeria como uma “neurose do encéfalo”, reforçava-se o vinculo entre a doença e as qualidades “naturais” da mulher: sensibilidade, emocionalidade e sentimento.
Os alienistas brasileiros faziam uma associação entre a histeria e o ser feminino. O médico Rodrigo José defendeu em 1838 a primeira tese na faculdade de medicina no Rio de Janeiro, definindo a histeria como “uma moléstia de que o útero é a sede”. Seria um distúrbio ligado à sexualidade. Os ataques histéricos apareciam na mulher no período entre a puberdade e a menopausa, ou seja, no inicio e no fim da vida sexual. Em seu estudo sobre histerismo, o médico Cordeiro, o definia como uma “neurose dos órgãos genitais da mulher” estabelecendo uma associação entre histeria, útero e mulher. Os ataques histéricos coincidiam com a proximidade da época da menstruação, segundo o médico José Gonçalves.
Havia uma verdadeira confusão e desconhecimento do corpo feminino e das causas das doenças mentais. Se por outro lado existiam médicos que questionavam estas opressões cientificas sobre as mulheres, a grande maioria as condenava a ignorância de seu corpo e a hospícios.
“O mal histérico” à sufocação ou à retenção do esperma sem que houvesse a fecundação. O mal poderia provocar a loucura ou até a morte quando não se procriava. Fixava-se os limites entre comportamentos sexuais normais e patológicos, a partir da ausência e das ditas perversões sexuais.
As conquistas e sofisticações da psiquiatria na passagem do século XIX para o XX, não questionou a associação entre a mulher e a histeria, aprofundaram-na dando-lhe o aspecto de verdade cientifica. Ainda por muito tempo, as palavras do psiquiatra francês Ulysse Trélat, continuariam a ecoar dentro e fora do mundo acadêmico e cientifico: “Toda mulher é feita para sentir e sentir é quase histeria”. As mulheres segundo Pinel ficavam loucas irrecuperáveis com o seu exercício inadequado da sexualidade, devassidão, propensão ao onanismo e homossexualidade.

Mabel Dias

Baseado no texto de Magali Engel, do livro “A História das mulheres no Brasil”

terça-feira, 15 de julho de 2008

A mulher é uma mercadoria como outra qualquer, diz o antropólogo Marc Augé

“A prostituição revela a verdadeira face do utilitarismo capitalista”, diz o antropólogo francês, Marc Augé. E o espetacular incremento do número de prostitutas nos últimos 15 anos “é filho da globalização”.
Marc Augé é o autor da fórmula “não-lugar” [Não-lugares. Introdução a uma antropologia da supermodernidade (Papirus, 1994)], que tanto êxito teve para representar e esclarecer dinâmicas da sociedade contemporânea. Perguntado pela formas de exploração que hoje afetam 500 mil pessoas em toda a Europa – mais de 30 mil na Itália –, lança sua acusação: “O tráfico de escravos do Terceiro Mundo é o produto de nossas sociedades. Alimenta-se de necessidades consubstanciais com o atual sistema econômico no qual tudo, inclusive os seres humanos, é reduzido a mercadoria”.
Segue a íntegra da entrevista que o antropólogo Marc Augé concedeu ao jornal italiano Il Manifesto, 3-11-2007. Tomamos a tradução espanhola do sítio La Haine, 7-11-2007. A tradução é do Cepat.
Por que, depois de anos de diminuição, nos últimos quinze anos cresceu novamente de maneira exponencial o número de prostitutas?
Trata-se de um dos vieses negativos de uma globalização em que tudo se converte em objeto de comércio. Também a vida humana. É um fenômeno que se dá em ambos os sentidos: através da importação de escravas que são vendidas nas aceras de nossas ruas, mas também, graças ao turismo sexual, em países em que a pobreza é tão grande, que força muitas mulheres a colocar o próprio corpo em leilão. Um fenômeno que se desenvolveu inclusive em concomitância com a ampliação das economias nacionais e dos mercados.
Então, a prostituição como o negativo de nosso sistema econômico e social?
A prostituição é um fenômeno extremo, e precisamente por isso permite reconhecer mais facilmente as estruturas sociais dominantes. No caso da Europa de hoje, reflete de maneira particularmente explícita e clara a cultura especificamente utilitarista e comercial do capitalismo. Uma cultura na qual tudo, até a própria existência individual, se converte em instrumento de satisfação do consumo. Uma cultura que teoriza a livre circulação das mercadorias, obrigando assim as pessoas que querem chegar ao Ocidente a se transformar em bens de consumo.
Contudo, as nossas são sociedades em que há uma relativa liberdade sexual.
É verdade, mas a ilusão de uma transformação antropológica, característica dos anos sessenta, era isso, uma ilusão. Desaparecida, por exemplo, a perspectiva de uma paridade completa homem-mulher, determinados modelos ancestrais reapareceram com todas as raízes intactas. Por essa razão, muitos clientes sustentam que andar com prostitutas lhes permite fazer com elas coisas que não podem fazer com suas mulheres. Com a diferença de que, hoje, aquelas pulsões ancestrais assumem características típicas de nosso tempo, e se expressam em relações cunhadas pelo sistema em que vivemos. A cultura consumista, por exemplo, estimula a prostituição enchendo a nossa vida cotidiana com inúmeras imagens eróticas, a fim de gerar novas necessidades, novas exigências e novas fatias de mercado.
Num recente estudo francês aparece uma elevadíssima taxa de violência dos clientes em relação às prostitutas.
Trata-se de um fenômeno muito complexo, no qual entram em jogo os clássicos mecanismos de dominação machista. No caso específico, o fato de que estas mulheres não sejam prostitutas, mas verdadeiras escravas, pessoas que não escolheram exercer essa atividade, mas às quais isso foi imposto à força, as torna ainda mais atrativas para um certo sadismo que se alimenta da imagem do branco dominador que maltrata a mulher, ser mais frágil e acima de tudo, pertencente a populações consideradas inferiores. Este é o esquema, alimentado e difundido pelos meios de comunicação e pela natureza arquicomercial do atual capitalismo. Por essa razão, hoje, as prostitutas já não são mais seres humanos, mas objetos para usar e descartar.
Como você analisa o fenômeno fora dos grandes centros habitados, no campo ou nos centros provinciais?
É uma prova a mais de um tipo de globalização consistente em submeter o território às exigências do consumo. Um fenômeno que coincide com o desaparecimento, cada vez mais claro, da distinção entre campo e cidade. Para dar-se conta disso, basta viajar: já não existem oásis ou descontinuidades na exploração do território. As prostitutas-escravas não são uma exceção; estão disponíveis em qualquer lugar.

Considerações sobre o anarcofeminismo

Considerações sobre o anarcofeminismo

Por Vanessa Luana e Mabel Dias

Anarcofeminismo, também chamado de feminismo libertário, é o movimento de luta pela libertação da mulher com um viés anarquista. Para as anarcofeministas, a emancipação feminina só se dará com a destruição do Estado e do sistema de classes, responsáveis pela opressão do gênero feminino. O anarcofeminismo é, então, a busca pela transformação da sociedade sob a perspectiva dos conflitos de gênero; é a tentativa de superação do patriarcado sem pretender estabelecer outras formas de domínio em seu lugar. Trata-se de um caminho para se vivenciar a anarquia para chegar à sociedade libertária.
Não existe uma data precisa para o surgimento do anarcofeminismo. Pode-se dizer que a partir do momento que as mulheres anarquistas começaram a participar ativamente do movimento anarquista, o anarcofeminismo começou a tomar forma. As libertárias passaram a atuar ao lado dos companheiros ácratas e a discutir, propondo meios de combate à opressão que a mulher sofria na sociedade da época.
Maria Lacerda de Moura, Sônia Oiticica, Luce Fabri, Matilde Magrassi, Emma Goldman, Paula Soares, Áurea Quadrado, são apenas algumas das mulheres anarquistas que atuavam no movimento, seja de maneira individual ou em coletivos. Boa parte de suas produções foram perdidas ou destruídas pelos partidos comunistas e pelos governos totalitários, como os de Getúlio Vargas, que prendeu e perseguiu muitos grupos libertários.
Atualmente, existem poucos grupos e mulheres anarcofeministas pelo Brasil e no mundo. Mesmo assim, a vivência daquelas mulheres ainda reflete fortemente em diversos países, como Brasil, México, Bolívia, Espanha, Itália, EUA, entre outros.
O anarcofeminismo compreende que a opressão da mulher é resultado de uma sociedade capitalista e patriarcal, e não do gênero masculino. Por isto, propõe uma sociedade anarquista, em que mulheres e homens sejam vistos como seres humanos completos. O homem é também explorado pelo capitalismo e tem sua masculinidade a todo tempo colocada à prova, porém a sua opressão se dá de maneira diferenciada da da mulher. Enquanto as mulheres são oprimidas, discriminadas, violentadas pelo seu sexo.
Embora o anarcofeminismo beba diretamente da fonte da política anarquista, ele contesta a atuação dos homens libertários e do próprio movimento anarquista, que não dá a devida visibilidade às questões relacionadas à mulher e muitas vezes vê como redundante o termo anarcofeminismo. Por causa disto, foram formados grupos só com mulheres que trouxeram para dentro do movimento estas questões de gênero e da mulher de maneira decisiva. Aqui no Brasil havia o Coletivo AnarcoFeminista (CAF) – surgido nos anos 90 na capital paulista, e atualmente o Grito de Revolta das Mulheres Libertárias (GRML), também em São Paulo. Devido a isto, o anarcofeminismo tomou mais força. São as mulheres libertárias falando com voz própria. Não há lideranças entre as anarcofeministas, sendo sua organização autônoma e horizontal, não havendo hierarquias nem práticas autoritárias nem de valores burgueses. As anarcofeministas não buscam mudanças através de instituições estatais, aprovação de leis, pelo voto ou com a entrada de uma mulher no poder. Estas práticas podem fazer alguma diferença, mas são mínimas porque o problema maior, a raiz de todo o patriarcado perpassa as questões de gênero. O importante é que todas as mulheres tenham poder próprio, pois as mudanças de sexo nos cargos de chefia não alteram a situação das coisas. Que elas possam se expressar sem terem de ser tuteladas por organizações não governamentais ou pelo próprio governo. Maria Lacerda de Moura já dizia: “Não será com algumas mulheres no poder que resolveremos o problema das que estão no tanque, nas ruas, na cozinha!”
As anarcofeministas acreditam na prática da ação direta. É claro a importância que as anarcofeministas têm na transformação do discurso e da prática anarquista. No entanto, esta disposição não pode se restringir a apenas um grupo especifico, tornando assim suas bandeiras sem o longo alcance que merece ter.
A lógica do anarcofeminismo é carregada de potencialidades que possibilitam uma boa articulação entre a revolução individual e a necessidade de uma revolução social que garanta a perpetuação destas novas relações.
Em 2007, foi publicado em parceria com a jornalista e anarcofeminista Mabel Dias e a Imprensa Marginal de São Paulo um livreto contando a história destas mulheres anarquistas. O trabalho é uma reedição de fanzines que foram editados nos anos de 2002 e 2003 e que agora recebem um novo formato. Um segundo livreto será publicado em breve, desta vez, com as histórias das libertárias contemporâneas.

domingo, 2 de março de 2008

Além do Feminismo, além do gênero

A fim de criar uma revolução que possa por fim a todo tipo dedominação, é necessário acabar com as tendências a que todos nós nos vemos submetidos.Isto requer que sejamos conscientes do papel que esta sociedade nosImpõe e busquemos seus pontos fracos, com o objetivo de descobrir seus limites para transgredi-los. A sexualidade é uma expressão essencial dos desejos e paixões individuais, da chama que pode inflamar tanto o amor como a revolta. Assim pode ser uma força importante dos desejos de cada um de nós, que pode levantar-nos além da massa, como seres únicos e indomáveis. O gênero por outro lado, é um intermediário construído pela ordem social para inibir a energia sexual,enclaustrá-la e limitá-la, direcionando-a a fazer a reprodução desta ordem de dominação e submissão. Desta maneira, o gênero se converte em um impedimento da vontade de decidir livremente como queremos viver e nos relacionar. Não obstante, até agora, ao homem foi concedida maior liberdade de fazer valer sua vontade dentro destes papéis do que a mulher,o que explica de forma bastante razoável porque existem mais anarquistas, revolucionários e gente que atua fora da legalidade que são homens e não mulheres. As mulheres que foram fortes, que tem se rebelado, fizeram isso porque superaram sua feminilidade. Lamentavelmente o Movimento de Liberação da Mulher (MLM) que ressurgiu nos anos 60, não prosperou no desenvolvimento de uma análise profunda da natureza da dominação em sua totalidade e do papel jogado pelos gêneros em sua reprodução. Um movimento que apareceu diante da necessidade de nos livrar dos papéis de gênero para sermos assim indivíduos completos e auto-suficientes, foi transformado em uma especialização como a maior parte das lutas parciais da época. Garantindo desta maneira a impossibilidade de levar a cabo uma análise global dentro deste contexto. Esta especialização é o feminismo atual, que começou desenvolvendo-sefora do MLM nos finais dos anos 60. Seu objetivo, não era tanto a liberação da mulher como individualidade dos limites impostos pelos papéis atribuídos a seu gênero, como a liberação da "mulher" como categoria social. Junto às correntes políticas principais, este projeto consistiu em obter direitos, reconhecimento e proteção para as mulheres como uma categoria social, reconhecida conforme a legislação. Em teoria, o feminismo radical se moveu para além da legalidade com o objetivo de liberar as mulheres como uma categoria social, da dominação masculina. Dado que a dominação masculina não é explorada suficientemente como parte da dominação total -inclusive pelas anarcofeministas- a retórica do feminismo radical, frequentemente adquire um estilo similar aos de lutas de liberação nacional. Mas apesar das diferenças no método e na teoria, a prática feminista liberal (burguesa, principal) e o feminismo radical frequentemente são coincidentes. Isto não é uma casualidade. A especialização do feminismo radical consiste em centrar-se por completo nos sofrimentos da mulher nas mãos de homens. Se a catalogação fosse alguma vez completada, a especialização não seria durante mais tempo necessária e havia chegado o momento de traduzir-se mais além da lista de ofensas sofridas, até uma vontade real e atual analisar a natureza da opressão da mulher nesta sociedade e levar a cabo ações reais e muito meditadas para acabar com esta opressão. Assim que a manutenção desta especialização requer que as feministas ampliem este catálogo infinito, inclusive até o ponto de dar explicações pelas ações opressivas levadas a cabo por mulheres em postos de poder, como expressões do poder patriarcal, e assim desta maneira liberaria estas mulheres da responsabilidade de suas ações. Qualquer analise séria das completas relações de dominação, como as que existem atualmente, é deixada de lado a favor de uma ideologia na qual o homem domina e a mulher é a vitima da dominação. Mas a criação de uma identidade com base na própria opressão, sobre avitimização sofrida, não proporciona a força ou a independência. No lugar disto, cria uma necessidade de proteção e segurança que eclipsa o desejo de liberdade e independência. No reino do teórico e psicológico, uma abstrata e universa "irmandade feminina" pode encontrar essa necessidade, mas a fim de fornecer uma base para esta irmandade, da "mística feminilidade", a qual foi exposta nos anos 60 como uma construção cultural que apoiava a dominação masculina, é revivida em forma de espiritualidade de mulher, culto a deusa e uma variedade de outras ideologias feministas.A vontade de liberar a mulher como categoria social, alcança sua apoteose na recriação dos papeis do gênero feminino em nome de uma alusiva solidariedade de gênero. O feito de que muitas feministas radicais haviam recorrido a policiais, tribunais e outros programas estatais de proteção de mulheres (imitando assim o feminismo burguês.) só serve para sublinhar a falsa natureza da "irmandade" que proclamam. Apesar de ter havido tentativas de mover-se além destes limites dentro do contexto do feminismo, esta especialização foi sua melhor definição durante três décadas. Na forma em que foi praticado falhou ao apresentar um desafio revolucionário tanto contra o gênero como contra a dominação. O projeto anarquista de liberação global nos chama para nos movermos além destes limites até o ponto de atacar o gênero em si mesmo, com o objetivo de converter-nos em seres completos, definíveis não como um conglomerado de identidades sociais, senão como únicos e completos indivíduos. É um estereótipo e um erro afirmar que os homens e mulheres têm sofrido iguais opressões dentro de seus papéis de gênero. Os papéis do gênero masculino permitem ao homem uma grande liberdade de ação para afirmação de sua própria vontade. Por isso a liberação da mulher de seus papéis de gênero não consiste em ser mais masculina senão em ir bem mais além de sua feminilidade, assim para os homens a questão não é ser mais feminino senão ir bem mais além de sua masculinidade. A questão é descobrir que o centro da unicidade que está em cada um de nós, vai mais além de todos os papéis de gênero e da forma em que cada um atua, vive e pensa no mundo, tanto no domínio sexual como em todos os outros. Separar o gênero em função da sexualidade, desde a totalidade de nossoser, fixando características especificas segundo o gênero ao que sepertence, serve para perpetuar a atual ordem social. Como conseqüênciadisso, a energia sexual, que poderia ser um extraordinário potencialrevolucionário, é canalizada para reprodução das relações de dominaçãoe submissão, de dependência e desespero. A miséria sexual que isto temproduzido e sua exploração comercial está por todos os lados. A chamada inadequada dos povos a "abraçar tanto a masculinidade como a feminilidade" cai em falta de análise sobre estes conceitos, já que ambos são invenções sociais que servem aos propósitos do poder. Assim, mudar a natureza dos papéis do gênero, aumentar seu número oumodificar sua forma é inútil sob uma perspectiva revolucionaria, já que isto só serve para ajustar mecanicamente a forma de condutas quecanalizam nossa energia sexual. No lugar disto, necessitamos nos reapropriar de nossa energia sexual para reintegrá-la na totalidade de nossos seres a fim de fazer-nos extensos e poderosos como para explorar cada conduto e inundar o terreno da existência com nosso ser indomado. Isto não é uma tarefa terapêutica, senão uma revolta insolente - uma que emane desde nossas forças e nossa recusa a retroceder. Se nosso desejo é destruir toda dominação, então é necessário que nos movamos além de tudo o que nos reprime, além do feminismo e além do gênero, porque aqui é onde encontramos a capacidade de criar nossa indomável individualidade quenos conduzirá contra toda dominação sem vacilação. Se desejarmos destruir a lógica da submissão, este deve ser nosso mínimo objetivo. Willful Disobedience Vol. 2, No. 8.